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Foto do escritorJoão Theodoro

Como a Pós-Escassez é Possível (Ainda Hoje)

Atualizado: 9 de mar. de 2023


Fritz Zuler-Buhler, "La reine Bacchanal", 1864.

Final de semana passado eu conheci um idiota que se dizia comunista. Tinha até uma foice e um martelo tatuados no peito, em uma demonstração de mentalidade adolescente da pior espécie, ainda mais por já ter quarenta anos e ser estudado. Segundo ele, era advogado e professor de Direito. Eu falei que o curso de Direito tinha um viés socialista e lhe perguntei se ele havia estudado Economia. Ele me respondeu que sim. Ao perguntar-lhe, no entanto, qual escola, ele desconversou e mencionou que havia lido Hegel, que nem economista era. Ou seja, só mais um idiota útil.


Para piorar, ele ainda se dizia católico. Como eu não estava com ânimo para debate, conforme aliás vem me acontecendo nos últimos anos, com exceção de um grupo seleto de amigos com os quais, de quando em vez, eu ainda contendo, por haver ali algum apreço pela lógica, então eu preferi apenas indagar-lhe como ele conciliava as duas coisas, as quais são obviamente inconciliáveis. Apenas um jumento não consegue enxergar cristianismo e comunismo são sistemas incompatíveis. Ele me respondeu com uma fala tão estúpida que me admirei da sua ignorância. Disse ele que na Bíblia, em Atos, há uma passagem que diz que todo o povo foi tomado pelo Espírito Santo e, havendo absoluta harmonia, morreu a propriedade privada.


Eu poderia ter-lhe perguntado onde na Bíblia dizia que a propriedade privada devia ser abolida pela força das armas, primeiro transferindo-a para o Estado e depois repartindo-a, dizimando-se enquanto isso aqueles que discordassem do novo estado de coisas. O imbecil não consegue diferenciar um acontecimento espontâneo havido em razão de uma evolução espiritual da humanidade de uma imposição política baseada em fogo, matança e revolução. Esse é o primeiro ponto, mas ele não entenderia, assim como a maioria dos comunistas.


O segundo ponto é sobre o fim da propriedade privada, que é sim possível, embora a Escola Austríaca nunca tenha falado disso porque foge, creio, ao seu escopo.


A partir daqui, então, eu quero falar sobre como a propriedade privada pode chegar ao fim e como se pode alcançar um estado de não escassez ou pós-escassez.


Sucede o seguinte. O conceito de propriedade privada depende do de escassez, que pode ser definido como uma situação em que não se pode satisfazer todos os desejos ao mesmo tempo. O estudioso de Economia deve saber que a primeira lei da Economia é a escassez, mas ele provavelmente não repara que esse se trata de um princípio a priori, ou seja, que não depende da experiência para ser atestado. Talvez o homem averigúe o fato da escassez ao olhar para um bolo em cima da mesa e ver que não há bolo para todo mundo. Mas ele não percebe que em nenhum lugar ele pôde observar a escassez em si. Ele observa apenas objetos e atribui a eles a qualidade da escassez, da finitude, sempre em relação a seus próprios fins. Se ele não tiver interesse nenhum em dado objeto, este também não será escasso nem abundante. Um fio de cabelo na cabeça é pouco; na sopa, é muito.


Se, em algum dia e algum lugar, um povo se desenvolver espiritualmente a ponto de se desapegar de tudo, e ninguém mais guardar em si a noção de meu e seu, então o conceito de propriedade privada cairá em desuso e todos viverão em absoluta harmonia, embora ainda não em igualdade, já que isso sim é impossível em razão da natural variedade de talentos e interesses dos homens. Um tal estado de coisas não é utópico porque é teoricamente possível. Uma utopia é algo teoricamente impossível, como o é a economia planificada do comunismo.


Não estou dizendo que devemos buscar esse estado espiritual. Estou dizendo que, se houver um conjunto de homens cuja mentalidade for essa, então ali o conceito de propriedade privada não fará mais sentido. Trata-se apenas de uma afirmação teórica. Pode ser que isso algum dia aconteça? Pode, não é impossível.


Quanto ao fim da escassez, ela jamais poderá acontecer a partir de um progresso dos meios de produção. Por mais que o homem produza tudo quanto deseje e atinja o nível de produzir qualquer coisa a partir tão somente do pensamento, ainda assim ele viverá em escassez, pois este se funda em um sentimento interno de insatisfação. Ele só conseguirá superar a escassez quando não mais tiver desejos e, assim, sentir-se completo. Esse é o estado búdico, o nirvana, a iluminação espiritual, ou como quiser chamá-lo. Também se trata de um estado possível mas extremamente difícil de alcançar.


Até lá, nós não queremos a abolição da propriedade privada. Muito pelo contrário: nós queremos a sua exasperação ao máximo, o seu absolutismo. O homem só poderá viver em paz em um mundo de escassez se cada um respeitar o que pertence ao outro e suas relações forem baseadas no acordo e no voluntarismo.


Qualquer coisa diferente disso é defender o roubo, a usurpação, o abuso, o sequestro e a fraude. Somente a lei de propriedade privada pode permitir um convívio justo e economicamente eficiente entre os homens. Ou bem a propriedade privada, ou bem a escravidão. As duas coisas não podem coexistir.


Mesmo assim, você pode ainda hoje, individualmente, atingir o estado de não escassez: basta cortar na raiz a fonte de todos os desejos. A sua mente está viciada em desejar. Quando você realiza um desejo, ela passa logo para o próximo, e isso nunca acaba. O homem vai sempre querer mais: basta ver as biografias de todos os grandes conquistadores do mundo: Ciro, Alexandre Magno, César, Napoleão. Eles nunca ficavam satisfeitos.


Isso porque o problema não é o desejo, e sim o ato de desejar. Quando você tomar consciência disso e, talvez subitamente, ou a partir de um grande esforço, fizer essa roda parar de girar, então você atingiu o paraíso pós-escassez na Terra.



_______


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1 Comment


Se o ato de desejar está implícito no conceito da ação, e não é possível o homem não agir, então se segue que o paraíso pós-escassez na Terra é impossível.

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