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Foto do escritorJoão Theodoro

Das Profundezas da Mediocridade aos Cumes do Desespero

Atualizado: 24 de set.

Giulio Aristide Sartorio, "Festival", 1923.

Quando eu iniciei a minha evolução espiritual, me foi dito que eu precisava me livrar da mente crítica. Isto significava oferecer ao mundo um olhar mais complacente, e não desprezar as coisas que tinha por desprezíveis. Este exercício, feito no Brasil, é como correr na areia sob o sol do meio-dia: pesa-nos mais, por abundante a matéria de que me devia livrar. Porém, tanto quanto difícil era esse exercício necessário, e fi-lo com total devoção. Em vez de desprezo, a tudo que via dava amor, dava respeito, e compaixão. Fui tão bem-sucedido nesta sadhana que com o tempo esqueci que estava a navegar num mar de mediocridade, e a natureza mesquinha do brasileiro foi lançada em um quarto escuro da minha consciência.


Uma opressão sutil me apertava, e eu não sabia o que era. Venci a depressão, mas um desânimo e um desestímulo constantes me velavam. Finalmente, percebi o que era: o constante estado de mesquinhez intelectual e espiritual do ambiente que nos cerca. É sutil, e perceber isso é como um peixe perceber que está nadando. É tão comum, é tão parte da cultura, que se não nota. Um indivíduo pode passar a vida inteira sem conhecer algo de superior. Sem saber que existe uma instância mais elevada do pensamento, da virtude e da cultura. O brasileiro é mesquinho em todos os níveis do Ser, e odeia tudo quanto é superior. Os melhorzinhos neste país são os empresários, é a classe burquesa. Para verdes quão baixo está o nível.


Essa opressão é a de um ar poluído pela mediocridade. Para onde quer que olhemos, vemo-la. E o espírito que quer subir precisa refrear-se, se não quer viver como um ermitão. A pobreza intelectual começa em não conhecer o brasileiro o próprio idioma, e desprezar a norma culta. Nem o brasileiro médio nem o acadêmico conhecem o português a ponto de o saber bem ler e bem escrever. Eles são melhores apenas que um mudo, que fala berrando e gemendo. Nem conhecem a norma nem se importam de errá-la, antes apodam de severo quem a quer ver lídima. Quando converso com um de meus amigos cultos, o meu português é um; quando converso com todos os outros brasileiros, o meu português é outro. Aquele é o português de um falante nativo da língua. Este, o português de um inculto. De modo que estamos a sempre acostumar nossos ouvidos com o erro e o desleixo. É uma lei do convívio assemelharem-se uns aos outros para poderem melhor se entender e avir. Utilizar um linguajar culto diante dos comuns é como ir de toga à feira. É feio, cafona e estranho. E esse nivelamento por baixo vai tornando cada vez mais medíocres as traduções de obras eruditas. A língua vai se empobrecendo, e com ela as formas e possibilidades de expressão. O gosto pelo prático vence o bom gosto. E com a língua se vão empobrecendo os espíritos dos falantes.

 

Julgo, Sócrates, que a maior parte da educação masculina consiste em adquirir o domínio da poesia, ou seja, capacitar-se a compreender o discurso poético, saber quando um poema foi corretamente composto e quando não foi, além de capacitar-se a distingui-lo e explicá-lo quando questionado a respeito.[1]

 

Hoje em dia, não só é incomum ver um português erudito nalguma tradução nova de obra antiga, como é usual verem-se erros de português nas obras populares. Por mais que uma tradução como as de Manuel Odorico Mendes e António Feliciano de Castilho pequem pelo excesso, pelo menos ali se exercita o indivíduo na língua e aprende novos recursos e vocábulos. O português coloquial deveria ser reservado à plebe, àqueles a quem o vernáculo não alcança. À população instruída cabe empregar o português escorreito, seja mais, seja menos culto. O problema é que o país inteiro é plebe.


A perda do idioma é uma catástrofe. Pensamento é linguagem, e estando esta precária aquele vai no mesmo molde. Daí que temos um país de artistas, cientistas, advogados, médicos e engenheiros todos imbecis. “O brasileiro talvez seja o povo mais dinheirista do mundo.” Em se tendo dinheiro, em se podendo viajar, tudo está certo. A instrução, enquanto parte da formação do indivíduo, é vista como uma vaidade ou mero hobby. Uma vez eu estava passeando numa livraria com uma ex-namorada e lhe disse: “A literatura enriquece o espírito”. Ao que ela respondeu: “Então o meu espírito é pobre”. E respondeu-me ela isso com tal naturalidade e tão desprendida graça, que vi que para ela qualquer aspecto da vida cultural era tão só uma futilidade. O brasileiro não tem nem sequer ideia da importância da cultura. Ele não sabe que o ser pode desenvolver-se para além de tornar-se um mero agente econômico. Um homem que não sabe o que é um soneto, por mais rico que se faça, nunca passará de um mero trabalhador.


Escrever minha pouquidade de tema tão vultoso faz-me quase ter uma vertigem, pois muito melhor caberia este tema num tratado que num ensaio, e perco-me entre tantos aspectos a tratar. Tomemos fôlego! Eia! Tão grande é o assunto quanto é o território pátrio, e num só dia não se o há de atravessar. Falemos da vida cotidiana, onde não só a poluição atmosférica, visual e sonora nos sufoca, como também a própria mediocridade do povo.


Se o estado emocional de alguém é influenciado pela postura física que costumeiramente adota, pode-se explicar a baixa autoestima do brasileiro não somente por sua falta de inteligência, de educação e de maturidade, mas também por estar a sempre andar cabisbaixo pelas calçadas, que, se não andasse assim, o fariam a cada passo tropeçar e cair ou sujar os sapatos de bosta. Ter o brasileiro de andar assim, olhando para baixo, o faz levar em mente a constante lembrança do seu lugar: a submissão de uma casta inferior. Se toma, depois, um ônibus, continua a ser humilhado, que não há meio de transporte mais próprio para isso. Se, porém, um Uber toma, é obrigado a viajar no calor, na presença de um motorista soturno e esquisito, e sofrendo-lhe o gosto musical. Não há argumento melhor para demonstrar a mediocridade do povo brasileiro que o seu gosto musical. Pela qualidade da música bem se julga a da audiência. E digo que há uma correlação entre gosto musical e QI, tal que sertanejo, funk, pagode, trap e barulhos desse feitio só podem agradar a quem o possui inferior a 90. E é justamente esse tipo de canção que embala as viagens de Uber.


A Música Popular Brasileira, embora seja um pouco mais sofisticada, não deixa de ser medíocre. Apesar de algumas pessoas que se julgam sofisticadas gostarem dela, não demonstram com isso senão a sua mediocridade intelectual, coroada por uma soberba sem motivo. Qualquer um que tenha lido o cânon da poética ocidental despreza os letristas brasileiros; e qualquer um que conheça música erudita sabe por que a MPB bem recebe o nome popular. Com igual justiça se poderia chamar Música Plebeia Brasileira.


Do brasileiro, compensa-se a falta de cultura ensinando; a falta de bom gosto, relevando; a falta de inteligência, tolerando; mas a falta de maturidade, somente orando. Nunca houve lamento mais eloquente acerca dessa qualidade do brasileiro que o feito por Ed Motta, quando falou da dificuldade que tem de se dirigir ao brasileiro sem o ofender. É tão melindroso esse bicho, tão frágil em sua pequenez, tão antiaristocrático, que senão com muito cuidado se deve tratar com ele, e levá-lo como que em luvas de seda. Não aguenta ouvir uma verdade direta, não suporta ouvir um não, nem o sabe dizer. A honestidade, quando vem do outro, o magoa; quando vem de si, o amedronta. É um covarde, e por isso precisa defender-se sob opiniões permitidas, palavras bonitas e gestos copiados. De modo que a vida cotidiana por pouco não é uma pizza do Faustão ou um Encontro com Fátima Bernardes.


Conversar com um brasileiro sem a demagogia é como ir ter com bestas feras sem levar o chicote. Há de ver-se com elas quem o fizer! Uma conversa sincera é a última coisa que quereis ter com um brasileiro, vez que ele se ofenderá e sentir-se-á mal ainda que as opiniões desfavoráveis que emitirdes não forem nem sobre ele nem sobre alguém que ele conheça. Ao ver algo ou alguém ser posto sob criterioso julgamento, sente que essa atitude poderia ser também direcionada contra ele, e sente-se ameaçado de antemão, tal a sua falta de confiança em si mesmo. Não é que o brasileiro lide mal com críticas. De fato é o caso, mas não só isso. O brasileiro lida mal com qualquer critério de superioridade e excelência. E por isso a mediocridade não só é o seu lugar de conforto, como uma obrigação moral coletivamente assumida. Aqueles que excelem ou que tão somente desejam excelir são logo vistos como metidos e soberbos. Como ousam ser bons? Como ousam querer voar? O brasileiro não deve apenas manter-se na mediania, mas, caso venha a crescer, deve então diminuir-se, esconder seus méritos e abusar da modéstia, para não ofender aqueles que não tiveram a mesma habilidade ou a mesma coragem. A falsa modéstia, portanto, e a demagogia são duas competências que se devem dominar caso se deseje ter a estima de um brasileiro.


Corolário disso é a ausência quase absoluta de autenticidade. Conheci uma pessoa que julga-se autêntica por emitir alguns pareceres e impressões pessoais em suas palestras. Quando ela falou que era autêntica, percebi que ela se entendia assim por não ser uma cópia completa dos outros palestrantes e empresários, isto é, por colocar um pouco de toque pessoal em tudo o que faz. Ela não estava mentindo nem exagerando. De fato ela se considera autêntica, mesmo sendo indistinguível dos outros profissionais da sua área. Isso é quase inevitável, porque quem destoa do comum gera um desconforto e não é compreendido. O mercado gosta de padrões. E é seguro o que é conhecido e familiar. Contudo, notai que a autenticidade é coisa tão rara, que um pouco dela já parece muita.


Como disse alhures, o pai espiritual deste blogue é Michel de Montaigne, porque em tudo o imito nestes textos, se bem que não nas opiniões. De modo que me permito mudar de curso antes do fim da obra, como ele que, nos Ensaios, vai variando na forma de pensar sem nenhum pejo. Isso é força do princípio de Heráclito, que bem declarou a inconstância de tudo, e não poderia ser diferente no coração dos homens. E aponta meu coração agora para findar este imenso lamento, que em nada contribui para a melhoria do povo, senão para desabafo e descarrego do autor. É problema desses textos de desafogo e mui sinceros que, mudando o autor, eles ficam aleijados. Deixo-o então assim mesmo, mal-acabado e incompleto, para não pecar contra mim mesmo.


 

[1] Protágoras, Platão, Edipro, p. 303.

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