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Foto do escritorJoão Theodoro

Do escritor e o café


Egon Schiele, "Autorretrato com a Cabeça Abaixada", 1912.

Tenho por costume preparar uma xícara de café antes de escrever e a ir tomando enquanto escrevo, por ativar-me o engenho e redobrar-me o atrevimento – que escrever é um atrevimento disfarçado; pelo qual hábito me introduzo numa tradição secular de filósofos e artistas que transcende as escolas de pensamento: pois todos eles, católicos e protestantes, continentais e analíticos, idealistas e materialistas, parnasianos e modernistas, todos se irmanam na tradição do amor pelo grão etíope. Assim que, inobstante a ideia ou o estilo, eis o café a defendê-la, eis o café a realçá-lo.


A tal me acostumei de tal maneira, que já não sento para escrever sem antes preparar um café – que digo humildemente que não tomo qualquer um, mas somente do dito especial. Pois, já que o café é um veneno, se bem que “um veneno muito lento”, não vou piorar minha situação tomando veneno misturado com paus, pedras e cascas de insetos. Ademais, só tomo duas, no máximo três, xícaras de café por dia, donde não vou conspurcar esses suaves momentos tomando uma dose de lixo queimado. A tolerância – senão o gosto mesmo – do povo brasileiro em tomar lixo queimado é bem típico, aliás, da sua natureza, que odeia tudo quanto é nobre, fino e sofisticado e ama o barato e o vulgar: festeja assim o copinho americano, a cadeira de plástico, o churrasco fumacento. E não se trata isso, vede bem, de pobreza nem simplicidade, mas de puro e simples mau gosto. O gosto é treinado, sobretudo quando se nasce sem ele, e deve sempre mirar no bom e no belo. Havendo café com notas de pêssego ou notas de morango, vá lá que cada um tem a sua preferência: mas, havendo café e café com lixo, preferir o segundo é já andar com os porcos.


Três xícaras é o meu máximo primeiro porque não encontro na quarta mais prazer do que enfado, e porque tanto café não vai bem com a saúde do organismo, e atrapalha o repouso. Balzac tomava cinquenta xícaras de café por dia e viveu só até os cinquenta anos. Voltaire, no entanto, que tomava quase a mesma quantidade, morreu aos oitenta. Foi La Fontaine quem falou: “Se o café é um veneno, é um veneno muito lento.” Já Tesla, nem uma xícara sequer. De minha parte, tomo uma quantidade capaz de me causar o maior bem e o menor mal. E contudo acredito que desses todos Tesla é o mais certo, pois viveu e produziu sem se envenenar.


Beethoven preparava seu café com exatos sessenta grãos. E Bach tanto amou esse fruto que lhe compôs uma cantata.


Muitas ideias e conspirações foram tecidas nos cafés da Europa, onde a bebida se popularizou a partir do início do século XVIII. Pode ser até que o café tenha sido partícipe da Revolução Francesa, embora devamos nisso escusá-lo: ele não escolhe quem o bebe. O café é como o poder: traz à tona as disposições internas já existentes. Daí seu nome, que vem de Kahwah ou Cahue, e quer dizer força.


O meu amigo Alexandre Porto, autor de uma interessantíssima filosofia que explica os acontecimentos do universo desde o primeiro vir a ser até o estopim da singularidade, tem por costume escrever todos os dias, e todos os dias, antes de escrever, toma uma cápsula de cafeína, que não é senão muitas xícaras de café quebradas e reconstruídas num só elemento substancial, um reducionismo que é aliás mui próprio da sua filosofia.


Embora seja uma bebida Yang, do feminino o café possui o mistério, a sedução. Daí ser tão comum dizer-se que o prazer de um bom café começa no ritual de prepará-lo. Tomar café sem um contexto é uma bruteza; é como o sexo sem a conquista. O café exige um ritual, um momento, onde ele é consagrado e onde através dele uma outra atividade se consagra. Se essa atividade for uma conversa, o café a anima; se um labor, acelera; se um encontro, aproxima; se um refletir, eleva; se um discutir, modera; e se um folgar, vivifica.


Quando toma café, o escritor como que acende uma região absconsa do cérebro, e não só lhe vêm mais ideias, como lhe vêm mais claras. E, por estar menos inibido, escreve com mais ousadia. Escrever, como eu disse, é um atrevimento disfarçado, e requer coragem. Quem tem medo de se expor não escreve. Porque escrever não é só expor ideias, senão que também o estilo, e o “estilo é a fisionomia do espírito”. Logo, escrever é abrir as janelas da alma. Um homem assaz modesto ou cauteloso é incapaz de pôr a pena no papel e a língua no mundo. Ficará com medo de que lhe enxerguem a mesquinhez, a mediocridade, a ignorância, a pobreza, a estultícia. É por isso que a melhor receita para escrever bem é fazê-lo sem vaidade. Nada me fez subir mais o estilo do que me despir da vaidade. “Então por que”, perguntar-me-eis, “escreves com tão soberbo vernáculo, em vez de se exprimir com modéstia e simpleza?” Porque, respondo-vos, é assim que eu gosto de escrever. Antigamente era comum o estilo rebuscado e nobre, e qualquer um que soubesse escrever fazia-o assim, porque é bonito e demonstra bom gosto e boa criação. “É lei de corte que, naquilo que se escreve, se mostre a prudência e, na maneira de escrever, se conheça a criação.”[1] Já hoje o gosto decaiu, e mais ainda o letramento, por modo que não se sabe mais assim escrever, nem há público que o consiga ler. Esse é um dos resultados da "democratização" do ensino, o que é um absurdo em todo o aspecto, vez que a educação é, sempre foi e sempre será uma atividade elitista. A democratização do ensino não produz intelectuais, nem pessoas cultas, mas transforma asnos em asnos diplomados. Dá-lhes meia dúzia de palavras bonitas, apresenta-lhes meia dúzia de filósofos ateus e os solta para fazer a revolução dos bichos. E o que vós preferis: um burro que apenas leva a carga ou um burro que clama por revolução e nem a carga leva? Outrora o ignorante se sabia tal, por não ter acesso a estudos, e isso lhe dava humildade. Hoje o ignorante profere discursos nas cátedras universitárias.


O escritor deve portanto arrostar este aparente paradoxo: ter basta vaidade para escrever e basta humildade no escrever. Sem vaidade, isto é, sem considerar que o que se tem a dizer é digno de ser por muitos lido, nada se escreve. Sem contudo humildade, se cai na afetação. Ora, não me faço eu de vaidoso, escrevendo, e de presunçoso, publicando? Todo artista se considera muito importante. Mas também não sou humilde quando trago bem adestrada a minha pena?


Assim como para escrever, é o café bom para ler. Quão mais atentos e imersos não vamos na leitura quando a empreendemos com café? Se o café abre as portas da criatividade, também as luzes da atenção desperta. Na filosofia, aguça o poder de abstração. Na literatura, atiça as imagens. E, por estarmos mais dentro do texto, absorvemos e processamos mais rapidamente as informações. Ler com café é como acender uma segunda luz. A primeira alumia o papel, a segunda, o entendimento. Além disso, tudo parece mais interessante. E nisto vai o leitor mais horas lendo.


Sinto pena de quem diz não sentir mais o efeito estimulante do café. Digo-vos: cessai de o beber por um tempo. Quando voltardes, não exagereis. O café é uma droga potente. Se não estais a sentir mais o seu efeito, sinal é isso de intemperança. Eu sinto o efeito de todo gole que tomo, e acho, perdoai-me a heresia, que mais aprecio o efeito do que a própria bebida. Tanto que há dias em que, como Porto, limito-me ao reducionismo do comprimido. Mas, de fato, a experiência de moer e passar o café, sentir-lhe o aroma percorrer a casa e por fim saboreá-lo na porcelana é insubstituível. Mais que um hábito deleitoso, há nisto um simbolismo, um ritual que nos conecta a uma tradição antiga e forte.


Se o café participou do Iluminismo e da Revolução Francesa, também na Industrial esteve, e fomentou a produtividade dos trabalhadores. Diz-se que nasceu o coffee break da percepção de que uma pausa para o café, ainda que remunerada, aumentava a produtividade. Mais tarde tornou-se isso cultura de todas as empresas. Outras revoluções se hão por certo de fazer, mas qual tão imensa que possa vencer o quente e fluídico império do café?


[1] António de Guevara, Epístolas familiares, Epístola X.

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