Se tivesse eu que apontar o pai espiritual deste blogue, prontamente diria ser Michel de Montaigne, que inventou o gênero dos ensaios. O ensaio é um gênero textual em prosa no qual o autor versa sobre determinado assunto sem a pretensão de esgotá-lo nem tratá-lo com o devido esmero filosófico ou científico, o que lhe permite muito maior liberdade artística para escrever como lhe aprouver e deitar o estilo por todo o lugar. Também possui certo personalismo, como era comuníssimo em Montaigne, que amiúde tirava os temas e reflexões de seus textos da própria vida.
Não só o ensaio é descompromissado com o rigor da boa ciência e do bom raciocínio, pelo menos originalmente, como o é também com uma conclusão bem acabada ao final do texto e a uniformidade temática, de modo a permitir ao autor digressões e adendos tão longos que furtam todo o tema prenunciado no título. Forma nenhuma outra daria tamanha liberdade para aqueles que gostam de brincar com a língua e com o pensamento. Rejeito peremptoriamente a crônica como um meio alternativo a esse intento, por concebê-la uma aberração artística, um híbrido monstruoso da narrativa com a dissertação. Se um autor gosta de escrever crônicas, pode saber que é um soberbo. A crônica não é bem conto nem bem ensaio, e parece ser infinitamente mais fútil que ambos. Por isso considero o ensaio, sim, a melhor forma para dissertar.
E digo tudo isso porque, para falar do que tenciono, não serei sumamente direto, como quase sempre tenho feito e é justamente o que torna o escrever estes ensaios tão prazeroso – sendo o prazer outro elemento que permeia nosso espaço. Não tenho, é verdade, tanto conhecimento a ponto de fazê-los, queridos leitores, mais cultos a cada escrito, mas pelo menos me esforço para lhes dar algum prazer com as minhas palavras. E este seria, acho que posso dizer, o objetivo deste blogue.
E quero falar sobre o ler devagarmente porque, nem sempre tendo lido assim, quando enfim comecei a desse modo fazê-lo me senti tão bem que desejei compartilhar a descoberta, de um lado justificando os que leem lentamente e poderiam se sentir de algum modo incomodados com tão lento ritmo, e de outro estimulando os afoitos a irem no compasso dos vagarosos.
Não gosto de fazer nada com pressa, e mesmo quando lia mais prestamente acho que ainda assim o fazia a um passo mais lento que o costumeiro. Porém, por ter gula de livros e de saber, tinha sempre um livro à mão e outro no pensamento, e corria para chegar a este. Mas quando finalmente a este chegava, já outro ia na ideia, como o burro com a cenoura diante do focinho, estando sempre por assim dizer atrasado. Semelhante aperto só podia se dever a um tanto de soberba, ou, se preferir, falta de humildade, posto que nem tanto a modo a me fazer cronista. Eu queria engolir o máximo de livros possível para afastar a ignorância, talvez por não aceitá-la – daí o diagnóstico.
Nunca fui de gula – a comida para mim não tem a preeminência necessária para isso. Prezo o comer para nutrir o corpo. Se for ótima a comida, tanto melhor, mas em sendo boa já basta. Detesto perder tempo cozinhando, prefiro um alimento prático e nutritivo, e me viro bem com temperos, contudo até aí sou purista. Sou fã de doces, isso é verdade, mas não acredito pecar por excesso. A gula, então, nunca foi um problema. A luxúria talvez o seja, mas não mais do que o é para qualquer homem comum de todos os tempos. Diria até que estou abaixo da média nesse quesito. Não tenho nenhuma perversão, detesto vulgaridade, odeio mulheres baixas, desprezo prostitutas, jamais participei ou participaria de uma orgia e a promiscuidade me enoja. Dados os padrões modernos, portanto, estou longe de me atribuir o apodo de luxurioso. Quanto à ganância, passo longe. Afligiu-me menos esse pecado do que talvez seria conveniente. Embora eu goste de dinheiro, este nunca foi um móbil relevante da minha conduta. Como não sou ganancioso, quase não sinto inveja. Ademais esse é um sentimento que aprendi a desprezar desde pequeno, porque não via nele razão nenhuma de ser. Sou calmo por temperamento, então é raro irar-me. Não me considero caridoso, nem contudo avaro. E mais próximo me encontro daquilo do que disto. Um pouco de preguiça eu tenho, porém nada que me estorve de ser produtivo e agir quando devo. Já a soberba: eis o meu pecado.
E é a ela que devo o mau hábito de ler apressadamente. E isto pelo motivo já referido: a aversão à própria ignorância, consequência da falta de humildade, me compelia a apressurar as leituras. Foi quando eu amenizei essa soberba e lancei fora a pretensão de saber que pude finalmente apreciar uma leitura sem o desejo de que acabasse logo. E assim fazendo, vejam vocês, deu-se que passei a ler mais. Sucede que o desejo de terminar depressa, para seguir adiante lançando migalhas de conhecimento no sem fundo abismo da ignorância, pesava-me a atividade da leitura, tornando-a mais custosa e me indispondo mais para ela. Desse modo, lia menos. Agora, ao não querer avançar depressa, transponho muito mais páginas com muito menos custo. Além disso, me é melhor o entendimento e mais agradável o deleite.
Se não sou católico, nem por isso deixo de reconhecer na doutrina da Igreja algum tanto de sabedoria e um ou outro bom conselho para uma boa vida. E esses atos do corpo e do espírito a que chamamos pecados não deixam de ser condenáveis em certo grau e dignos de serem mantidos sob vigília para que não nos carreguem para algum inferno.
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