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Foto do escritorJoão Theodoro

Tudo É Vaidade


Jean-Baptiste Debret, "Verão", 1804.

O livro de Matias Aires, Reflexões sobre a vaidade dos homens, me mostrou que o ensinamento de Salomão está correto, e é acertado: tudo, tudo é vaidade. Se você ajuda alguém, o faz por vaidade; se não ajuda, também. Se é honesto, é pela vaidade de se dizer honesto; se é corrupto, é pela vaidade da ambição. A vaidade é a origem das virtudes e dos vícios, sendo um dos principais móveis da conduta humana.


O estilo de Matias Aires nunca vi igual, não sei se por ignorância minha ou singularidade do autor. Ele emenda um raciocínio a outro usando um exagero de pontos e vírgulas e dois pontos, de modo a formar orações gigantes, que mais parecem servir à sua vaidade de letrado que à boa exposição da matéria. Aliás, é nas letras que ele diz se encontrar o maior império da vaidade. Já eu penso que é na política.


O editor falou que esse teria sido o primeiro livro de filosofia do Brasil, mas não tem quase nada do que hoje eu entendo por filosofia, que é algo mais racional e sistemático. Parece e é um livro antes de sabedoria, coisa derivada da intuição e da perspicácia. Ele não parte de princípios tidos por inconcussos e daí constrói seu argumento, não; ele discorre acerca de um assunto universal, à maneira de Sêneca, e não à de Aristóteles. Não que tudo que seja filosofia se resuma a esse meu entendimento, mas estou bem certo de que Reflexões sobre a vaidade dos homens pertence antes à ordem da sapiência que à esfera da razão. Também porque existe muita poesia no discurso de Matias Aires, o que realça o seu desejo mais de persuadir que de convencer. Existem trechos que são quase uma poesia em prosa, tamanha é a verve artística do autor.


A morte que está de sentinela, em uma mão tem o relógio do tempo, na outra a foice fatal, e com esta de um golpe certo, e inevitável, dá fim à tragédia, corre a cortina e desaparece: a fortuna e a vaidade, que veem desbaratada a cena, caídas por terra as aparências, prostrados os atores, emudecido o coro, trocados os clarins em flautas tristes, os hinos em trenos, os cânticos em elegias, e em epitáfios os emblemas; as rosas encarnadas convertidas em lírios roxos, os girassóis em desmaiadas açucenas, entrelaçados os louros no cipreste, os cajados confundidos com os cetros, e com o burel a púrpura; a vaidade, pois, e a fortuna, que em menos de um instante viram desvanecidos os triunfos da vida pelos triunfos da morte, precipitadamente fogem, e deixam um lugar cheio de horror e sombras, e donde só reina o luto, a verdade e o desengano. Assim acaba o homem, assim acabam as suas glórias, e só assim acaba a sua vaidade.

Desse modo, é um livro que eu recomendaria àqueles que gostam de autoconhecimento e prosa antiga. Porque, além de aprender mais sobre si mesmo e a humanidade, bebe de um estilo nobre. Apesar de que eu não gostei tanto assim do estilo de Matias Aires, por conter afetação um pouco além da medida. Mesmo assim, a rasura de um antigo costuma conter mais beleza que os esmeros de um moderno.


A obra de Matias Aires gerou em mim aquilo que eu mais gosto de receber de um livro: uma transformação interna. Porque o ter visto que tudo é vaidade, me vi ali também, e consegui abrir mão de diversas tolices que me prendiam. Ele diz, por exemplo, que o homem parece que nasce para se fazer, e não para ser. Disso eu concluí que já sou tudo o que deveria ser, e que tudo o mais é acréscimo. Existe uma cobrança da sociedade para que sejamos mais, como se não fôssemos suficientes da maneira que somos. Ora, a quem eu devo ser mais? Onde eu assinei esse compromisso? Então eu percebi que tudo que eu fizesse além de meramente existir já seria um acréscimo, um bônus, um plus – porque Deus já me ama assim e de todo jeito. A partir daí eliminei dos ombros mais um pouco de autocobrança. Sentir-se pleno é um ideal. E como vou me sentir pleno se sempre acredito que não sou o bastante? A quem eu devo ter mais, produzir mais, ser mais? Percebe que essas cobranças são invenções para escravizá-lo? Se queremos ter mais, fazer mais e ser mais, é porque queremos, e não porque devemos. É porque, ainda que não precisando, buscamos sempre melhorar, por amor da evolução, e não por medo de não ser. Fazemos mais porque somos incríveis, extraordinários, e o céu é o limite. E, por incrível que pareça, quando eliminamos de sobre nós o peso da autocobrança, produzimos mais e com maior qualidade.


Ter visto que tudo é vaidade me fez também sentir compaixão pelas pessoas, um efeito engraçado do livro. O quanto as pessoas não fazem por vaidade, quão longe elas não vão? Chegam a erigir impérios, a cometer genocídios! Ou então, por vaidade, abrem mão de serem vaidosos, e abraçam a vaidade de serem humildes.

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